Apelação Criminal nº 2006.018799-1, de Blumenau.
Relator: Juiz José Carlos Carstens Köhler..
CRIME CONTRA OS COSTUMES - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR - INCONGRUÊNCIAS NO CONJUNTO PROBATÓRIO - DECLARAÇÕES DA SUPOSTA VÍTIMA QUE INSTAURA INTENSA DÚVIDA ACERCA DO COMETIMENTO DO CRIME E DE SUAS CIRCUNSTÂNCIAS - INCERTEZA SOBRE A EXISTÊNCIA DE CONTATO FÍSICO - IN DUBIO PRO REO - ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE.
RECURSO PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº 2006.018799-1, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Blumenau, em que é apelante M. F. da S. e apelado o Ministério Público, por sua Promotora:
ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, dar provimento ao Recurso.
Custas na forma da lei.
I -RELATÓRIO:
O Representante do Ministério Público da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Blumenau ofereceu denúncia contra M. F. da S., dando-o como incurso nas sanções do artigo 214, por duas vezes, c/c o artigo 224, alínea "a" e 226, inciso II, todos do Código Penal, pelos seguintes fatos descritos na proemial acusatória:
"Consta das inclusas peças que, o ora denunciado M. F. da S. e a mãe da vítima, S. F., conviveram maritalmente durante 08 anos. Após a separação, nasceu A. B. F., atualmente com 03 (três) anos de idade, fruto de um outro relacionamento.
Porém, desde o mês de novembro de 2005, o denunciado M. F. da S. e S. F. voltaram a conviver sob o mesmo teto novamente, morando com os filhos e a pequena A., enteada deste.
No dia 08 de dezembro de 2005, por volta das 18h30min, a vítima A. B. F. tomou banho com a ajuda de suas irmãs gêmeas de 09 (nove) anos de idade. Após o banho, o denunciado entrou no banheiro e disse que iria dar banho novamente na vítima.
Assim, com o propósito de satisfazer sua volúpia e lascívia, o denunciado despiu-se, ficando nu com a vítima no banheiro e, excitado, ejaculou sobre o corpo da mesma.
Em outra oportunidade, em dia e horário não especificados, a ser apurado durante a instrução do processo, o denunciado levou a vítima para o quarto, tirou sua roupa e praticou com a mesma atos libidinosos diversos da conjunção carnal, momento em que a mesma gritou chamando a atenção das irmãs que estavam na residência, as quais constataram que a vítima estava nua e o denunciado de cueca.
Deste modo, o denunciado constrangeu a vítima, sua enteada, A. B. F., mediante violência presumida, a praticar com ela atos libidinosos diversos da conjunção carnal" (fl. 03).
O réu M. F. da S. pugnou pela concessão de liberdade provisória (fls. 34/38 e 57), sendo o pedido indeferido (fls. 55/56).
Regularmente processado o feito, o Magistrado julgou procedente a denúncia (fls. 109/117), condenando M. F. da S. à pena de 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de reclusão, inicialmente em regime fechado, pela prática, por uma única vez, do crime previsto no artigo 214 c/c o artigo 224, alínea "a" e artigo 226, inciso II, todos do Código Penal, sendo negado ao Réu o direito de recorrer em liberdade. Após, tendo verificado erro material na dosimetria, alterou a pena, em correição (fls. 121/122), para 09 (nove) anos de reclusão, inicialmente em regime fechado.
Irresignado com a prestação jurisdicional, apelou o Increpado (fl. 131), pleiteando nas razões (fls. 132/140), em síntese, a absolvição por ausência de prova da materialidade do delito ou por serem as provas insuficientes para a condenação - artigo 386, incisos II e VI, do Código de Processo Penal. Pediu, outrossim, o direito de apelar em liberdade e os benefícios da Justiça Gratuita, com desnecessidade de pagamento de multa.
Com as contra-razões (fls. 144/150), os autos ascenderam a este Grau de Jurisdição e foram remetidos à douta Procuradoria-Geral de Justiça, que, em parecer lavrado pelo doutor Demétrio Constantino Serratine, opinou pelo desprovimento da Apelação (fls. 157/159).
Em sessão realizada em 12 de setembro de 2006, decidiu-se (fls. 165/169), por unanimidade, converter o julgamento em diligência para realizar-se a oitiva da suposta Vítima sob o crivo do contraditório.
Ouvida a potencial Ofendida, os autos reascenderam a este Grau de Jurisdição e a douta Procuradoria-Geral de Justiça ratificou o parecer, que opinava pelo desprovimento do presente recurso (fl. 178).
II -VOTO:
O Recurso merece prosperar.
De fato, não há prova suficiente para a condenação do Acusado, uma vez que pairam dúvidas no conjunto das provas.
Constata-se que o contexto probatório produzido na instrução criminal, quando analisado em face das declarações prestadas na fase administrativa, já possui algumas incongruências. No entanto, o que efetivamente evidencia necessário o decreto absolutório é a declaração da suposta Vítima (fl. 177), que instaurou intensa dúvida a respeito do fato e das circunstâncias que o envolveram.
Consta das declarações, na fase administrativa, o que segue:
"que a declarante foi para casa e lá [sua filha] M. [de 15 anos] contou-lhe com mais detalhes, que as gêmeas já haviam dado banho em A. e M. F. da S. entrou, ficando com a menina no banheiro; que, o banheiro não tem chave e as gêmeas foram chamar [a filha da declarante] M. [de 15 anos]; que, quando M. chegou, encontrou [a Vítima] A. nua, suja de sêmen e lá também estava M. F. da S., nu e de pênis ereto; que, [a filha da declarante] M. [de 15 anos] tirou A. do banheiro e ligou para a declarante" (S. F. - mãe da suposta Vítima - fl. 08)
"a declarante foi chamada pelas irmãs, para ver 'um negócio branco' na perna de A. [Vítima]; que, a declarante foi até o banheiro e viu que realmente havia algo, que julgou ser sêmen; que, a declarante perguntou quem havia deixado A. com o pai e as gêmeas lhe contaram que após terem dado banho na menina, o pai foi até lá e disse que iria dar banho novamente, pois elas não haviam dado direito; que, as gêmeas então deixaram o banheiro; que, as irmãs lhe contaram ainda que haviam visto M. F. da S. nu, de pênis ereto, no banheiro; que, a declarante então telefonou a sua mãe, contando o ocorrido" (M. - irmã, de 15 anos, da suposta Vítima - fl. 16)
Na fase judicial, tem-se as declarações abaixo transcritas:
"que a filha da declarante M. [de 9 anos] contou que o acusado levou a vítima para tomar banho com ele; que M. [de 9 anos] disse que foi até o banheiro e viu que a vítima estava com algo branco nas coxas (...); que M. [de 9 anos] não viu o acusado dentro do box [sic] porque há uma cortina; que ela viu a vítima quando ela saiu do box [sic]; que a vítima estava nua; que M. [de 9 anos] não viu se o acusado estava nu" (S. F. - mãe da suposta Vítima - fl. 67)
"que o acusado foi tomar banho com a vítima, coisa que nunca tinha acontecido antes; que ouviu a vítima dizendo que 'o pai tinha feito coisa com ela'; que viu que havia 'um negócio branco nas coxas dela'; que a vítima, durante o banho, não gritou nem pediu ajuda; que a vítima estava normal. (...) que a vítima disse que o pai tinha sentado ela no colo dele" (M. - irmã, de 15 anos, da suposta Vítima - fl. 68)
"encontrou o acusado tomando banho com a vítima; que os dois estavam nus; que a vítima havia tomado o seu primeiro banho um pouco antes; que quando a vítima saiu do banheiro 'tinha coisa branca na perna dela'; que a vítima estava normal; que foi a primeira vez que o acusado e a vítima tinham tomado banho juntos" (M. - irmã, de 9 anos, da suposta Vítima - fl. 69)
Pois bem, analisemos o que há de desarmônico nas declarações prestadas.
Enquanto S. F. afirma que M., sua filha de 15 anos, havia visto o Acusado nu e de pênis ereto, verifica-se que esta nada afirma a esse respeito na fase judicial. Observe-se que é M., de 9 anos, quem afirma ter visto o Acusado nu.
Além disso, consta das declarações de S. F. e de sua filha M., de 15 anos, que as gêmeas, de 9 anos, estavam dando banho na suposta Ofendida, mas uma destas meninas declarou, em Juízo (fl. 70), estar ausente no momento dos fatos.
Ainda, enquanto M., de 9 (nove) anos, afirma, em Juízo, ter visto o Réu nu, S. F. declara o contrário, ou seja, que a sua filha M., de 9 anos, não o havia visto nu.
Ademais, na valoração das provas, essas incongruências ganham relevo, uma vez que envolvem depoimento infantil. Vejamos a lição de Fernando de Almeida Pedroso:
"Nessa conjuntura, agrega-se ao depoimento infantil certa precariedade, valendo probatoriamente quando conte com certo aceno afirmativo e corroboração nas demais provas ou quando por elas não seja infirmado ou inquinado.
É mister, pois, que conserve o depoimento infantil, para sua recepção jurídica probante, certa coerência com os fatos e demais provas" (Prova Penal: doutrina e jurisprudência, 2ª ed., Revista dos Tribunais, 2005, p. 87-88)
Nesse contexto, ainda sobreveio o depoimento da suposta Vítima, instaurando intensa incerteza acerca do fato e das circunstâncias que o envolveram, fazendo indagar, inclusive, da existência de tipicidade na conduta do Acusado, como segue:
"que a depoente tirou toda a roupa para tomar banho e o réu também ficou sem roupa; que o banho demorou; que o banho demorou 'porque sim'; que o réu não passou sabonete no corpo da depoente nem outra coisa; que o réu não passou a mão pelo corpo da depoente; que tirou a roupa sozinha para o banho e foi a única vez; que não tirou a roupa na frente do réu que não a mencionada. (...) que o réu não jogou na depoente 'nenhuma aguinha branca'" (A. B. F. - suposta Vítima, fl. 177 - grifou-se)
Veja-se que pairam dúvidas quanto à existência de contato físico entre o Acusado e a suposta Vítima. Assim, não há certeza de que a conduta atribuída ao Recorrente tenha se enquadrado no previsto no artigo 214, do Código Penal.
Acerca do exposto, colhe-se da lição de Julio Fabbrini Mirabete: "É indispensável, para a caracterização do atentado violento ao pudor, o contato físico entre o agente e a vítima; não ocorrendo este, poderá caracterizar-se outro ilícito" (Código Penal interpretado, 5ª ed., Atlas, 1999, p. 1791).
Destarte, estando nebuloso o quadro probatório, tornando-se nebulosa a verificação dos fatos ocorridos e havendo depoimento da suposta Ofendida que não elucida a questão e, pelo contrário, intensifica sobremaneira as incertezas, impossível estabelecer qualquer condenação.
Nessa alheta:
"CRIME CONTRA OS COSTUMES - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR - VÍTIMA MENOR - RETRATAÇÃO EM JUÍZO - PALAVRA DA VÍTIMA QUE NÃO SE ENCONTRA COERENTE E HARMÔNICA COM A PROVA AMEALHADA - DÚVIDA QUANTO AO CRIME - ABSOLVIÇÃO QUE SE FAZ PRESENTE - PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO"
(Apelação Criminal, nº 01.024606-6, Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 26.03.2002)
E, ainda: "TACRSP: 'Se o fato existiu, mas a prova não pode precisar o que realmente ocorreu, o réu deve ser absolvido com fundamento no artigo 386, VI, do CPP, e não no inciso I, do mesmo dispositivo' (RJDTACRIM 22/395)" (in Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, 11ª ed., Atlas, 2003, p. 1004)
Ressalte-se ainda que, não havendo julgamento anterior referente ao mérito do presente Recurso, o pedido para apelar em liberdade foi conhecido apenas nesta oportunidade. Todavia, tendo sido reconhecida a absolvição, a imediata soltura do Acusado se impõe.
No que se refere ao pleito (fl. 40) de isenção do pagamento das custas processuais, em se tratando de decreto absolutório, resta prejudicado.
Por fim, o pedido para arbitramento de honorários (fl. 40) é indevido porquanto não houve nomeação em primeira instância - artigo 7º da Lei Complementar nº 155/97 - verificando-se ainda à fl. 51 que o Defensor anuiu à constituição do mandato de fl. 39.
É o quanto basta.
III -DECISÃO:
Diante do exposto, por unanimidade, dá-se provimento ao Recurso para absolver M. F. da S. com fulcro no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, com imediata comunicação ao Juízo a quo para as providências atinentes, salvo se por outro motivo estiver preso.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Irineu João da Silva e lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Demétrio Constantino Serratine.
Florianópolis, 27 de fevereiro de 2007.
Sérgio Paladino
PRESIDENTE COM VOTO
Carstens Köhler
RELATOR
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